sábado, março 7

O DIA DO JULGAMENTO

Estava um dia chuvoso e de forte ventania. Viajava para norte, tendo como destino Vila Cagaya, uma terra ribeirinha mundialmente conhecida pelas suas célebres e antigas caves, base de exportação e local de armazenagem, tratamento, envelhecimento e engarrafamento de um excepcional vinho generoso produzido muitas léguas adentro, nos socalcos de encostas solarengas, margens de um rio dourado.
Como apreciador dessa obra-prima vitivinícola portuguesa, recebi um irrecusável convite para participar na apresentação e promoção de um novo néctar de uma prestigiada marca nacional.
Curiosamente, Vila Cagaya é fronteiriça a “Palermo”. O rio dourado, que ali acaba, separa estas duas localidades, hoje ligadas por muitas pontes. Demasiadas “pontes”.
Há três, quatro décadas atrás, dizia-se “à boca cheia” em “Palermo”, que para lá da famosa ponte de ferro centenária, era “Marrocos”. Já nesse tempo, aquela obsessiva gentinha que medrava e pululava em “Palermo” sonhava com os “Mouros” à sua porta. Com o andar dos tempos, a promiscuidade alastrou por toda a Trypalândia como de uma peste se tratasse, e Vila Cagaya não escapou a esta triste sina. Autarcas cúmplices e promíscuos inquinaram esta terra que durante muitos anos se demarcou bem da podridão que já grassava em “Palermo”. Hoje, como muitas outras terras, suas vizinhas, numa margem ou na outra, Cagaya está contaminada irremediavelmente, não sem que em todos estes locais, se mantenham baluartes resistentes de gloriosas comunidades que de uma forma titânica têm lutado contra o império mafioso e corruptamente avassalador de “Palermo”.
Ainda Vila Cagaya despertava de uma manhã de cerrada neblina, já um visível burburinho surgia nos exteriores do seu “Domvs Ivstitiæ”. Essa agitação indiciava realmente, que algo de excepcional estava para ocorrer nesse dia.
Cautelosamente, não fosse o diabo tecê-las – muito embora o diabo local envergue as nossas cores – abeirei-me de um “mirone” equipado com um cachecol azul horrível e perguntei:
- Bom dia. Sabe dizer-me o porquê de tanta agitação, ali, no tribunal?
O homem, num tom um pouco azedo, lá respondeu.
- É o nosso padrinho que vai ser julgado!
- Nosso? Meu não é de certeza absoluta! – exclamei eu.
- Sim, sim. O meu padrinho, o padrinho de todos nós! – rematou ele em tom ameaçador, apontando para o horrível cachecol, já a olhar para mim de esguelha.
- Porra! Onde eu me vim meter! – disse cá para os meus vermelhões botões.
Pois! Pois!
Era, nem mais nem menos, o dia do início do julgamento do caso de “O envelope das cinco quinhentolas”, o dia do julgamento de Giorgio e seus pares, e nem de propósito, ali estava eu para testemunhar um acontecimento surrealista!
Quando me aproximei da porta principal do tribunal, nem queria acreditar. Uma visão fantasmagórica surgiu em frente dos meus olhos!
Carlos Calhordas, José Vígaro, Inodoro Rodriguez, Jo Selvano, Martins dos Tansos, Já Sinto Compáchão, Nodato Ramos, José MiLheiroz, Hélder Dantes, António Aguerrido, José Argentífero “O Arrecua”, Rosa Tantos e mais uns tantos astros de segunda grandeza, já na reforma, equipados a rigor, com os seus apitos dourados, entoando cânticos de louvor a Giorgio, empunhavam uma larga tarja, dizendo:
- Obrigado Giorgio! Sempre inocente! Estamos contigo até ao fim! – numa clara e inequívoca manifestação de apoio a um homem que marcou profundamente, numa determinada época, as suas vidas pessoais e as suas carreiras desportivas.
O tempo estava por minha conta e não desperdicei o momento. Muito a custo, empurrão daqui, pisadela de acolá, abrindo caminho entre “morconas” e “morcões”, “supermatulões”, “traficantes”, “passadores”, “guarda-costas”, “motoristas malhadores”, e mais miséria que por ali havia, lá consegui entrar na sala de audiências.
O ambiente era tenso, mas o silêncio era a palavra de ordem, qual código à moda de “Palermo”.
O cenário parecia ser o mais normal neste tipo de acontecimentos.
A tribuna dos jurados era composta por duas filas, em degrau. Em primeiro plano, da esquerda para a direita, sentavam-se “A Velha Macaca do Metro”, “Um Emplastro Qualquer”, “Me(r)dium Celse”, “Abel Carabinieri”, “Lôrenzo” e a “Cicciolina da Sedofeita”. Em segundo plano, e pela mesma ordem, “Nando Maduro”, “Andrade Corrupto”, “A Boquinha de Veludo da Foz”, “Esterqueira Mentes” (já com pulseira electrónica), “Estrôncio Merdeiro”, “Toino Met’Água”, “A Garganta Funda da Ribeira” e “Guilhermo Cagaya”.
Realmente um elenco de “luxo” e escolhido a dedo!
Uma miscelânea andrade de pascácios, manhosos, “donzelas do mais puro e fino quilate” e analfabetos profundos que iriam decidir o futuro de Giorgio e restantes réus.
No banco dos réus, figurava, como é óbvio, Giorgio. Toino CoArsujo, o traficante da “fruta” - maior parte dela importada do “Brasiu” - estava também presente, faltando o terceiro réu. O famigerado Angusto Sabe Daarte, que segundo recomendações do seu conselheiro matrimonial permaneceu em casa, justificando-se com um “resfriado”, provável resquício de um cházinho gelado tomado em casa de Giorgio, na Merdalena, ou de uma estratégica corrente de ar, vinda ameaçadoramente de “Palermo”.
Procurador, advogados desta e “da outra senhora”, testemunhas, administrativos, público, tristes e trastes, putas e quejandos, acomodavam-se.
O colectivo de juízes era composto por três elementos desconhecidos???
O juiz presidente ia dar início à sessão.
Uma martelada seca e o juiz declara:
- Está aberta a sessão. Levantem-se os réus!
Durante breves momentos pairou na sala um intenso fedor nauseabundo. Era a senha, o sinal de Giorgio!
O impensável aconteceu!
Como que uma mola, em simultâneo, ao invés de Giorgio e seu par, todos os jurados se levantaram!
“A Velha Macaca” e “O Celse”, à cautela e no imediato, agarraram “O Emplastro” pelos sovacos, e zás, de pé, bem firmes, sem falhar, já está!
Todos!
O cenário surrealista concretizava-se!
Nem o coitado de “O Emplastro” escapou!
Não aguentei. O cheiro e a cena!
Intoxicado, saí imediatamente daquele antro viciado e lá fui arejar, direitinho às caves, tomar um cálice de um velho néctar, a estrear, com reais e gloriosos 105 anos. Primeiro, um como prova e como brinde a essa vetusta idade e a essa extraordinária odisseia, e excepcionalmente, um segundo para esquecer aquela incrível visão matinal, só possível com a gentalha de “Palermo” e da sua agremiação – a da Fruta, Corrupção & Putedo.
Uma prova e um néctar magníficos!
Agradeci ao anfitrião, e rapidamente, pus-me a caminho da minha terra, evitando bexigosas ameaças, pondo-me realmente a salvo!
Sim, a salvo!
Porque “aquilo”, lá para aquelas bandas de “Palermo”, está cada vez mais podre!
Tanto ficará, que haverá de cair!

GRÃO VASCO