sexta-feira, outubro 6

Bombons com recheio de verdade

" Foi preciso que passassem dois meses para o novo presidente da Liga de Clubes tomar posse. Pronto, mas já tomou. E discursou como lhe competia. Com palavras cuidadosamente escolhidas para não ferir as susceptibilidades dos seus patrões — «ele é apenas um empregado dos clubes», disse sem a menor das gentilezas o presidente do Nacional — e com promessas de acção, muita acção. «Não vou descansar enquanto o futebol profissional não estiver limpo de uma suspeição generalizada», rematou.
Assim que se calou foi prontamente elogiado por Laurentino Dias, o secretário de Estado do Desporto. «Uma intervenção corajosa», disse o governante. Também o seu antecessor no cargo, Valentim Loureiro, se mostrou «positivamente surpreendido» com as palavras do empossado de fresco presidente da Liga.

Hermínio Loureiro foi muito aplaudido por uma plateia de dirigentes-arguidos e não-arguidos quando proferiu a chave-frase da sua alocução, a propósito do processo do Apito Dourado: «É uma vergonha para a Justiça, que em nada dignifica o futebol.» Eis um monumento ao compromisso apressadamente interpretado como um arrojo de valentia.

E, por isso, recebeu palmas. Porque para Hermínio Loureiro o problema reside na Justiça e o futebol é a vítima inocente. A Justiça é má, o futebol é bom. A culpa da situação não é de dirigentes, árbitros, empresários, que combinam favores e recompensas. A culpa é dos polícias que investigam, dos juízes que autorizam escutas telefónicas e da transcrição pública dessas conversas, o que não é permitido pela Lei.

Nem sequer foi suficientemente vago o presidente da Liga ao abordar a questão. Tivesse ordenado a frase ao contrário — «é uma vergonha para o futebol, que em nada dignifica a Justiça» — e teria, assim sim, produzido uma intervenção lúcida, prometedora e corajosa.

Mas não o fez. Colou-se à defesa dos arguidos, agitando o mesmo argumento de sempre em casos como este. Não interessam os factos apurados, o que interessa é que eles não deviam ser tornados públicos.

O segredo de justiça foi quebrado ao longo do processo do Apito Dourado? Sim, sem dúvida, talvez umas quinhentas vezes. Mas se não tivesse sido quebrado, Hermínio Loureiro jamais seria hoje o presidente da Liga.

Se a opinião pública não tivesse sido fornecida de informação como foi, se desconhecesse o teor das conversas dos suspeitos, poderiam todos os arguidos, todos sem excepção, explicar aos amigos, aos adeptos e à imprensa que tinham passado horas e dias no Tribunal de Gondomar a tratar de uns problemazinhos relacionados com multas de trânsito por estacionamento indevido dos respectivos bólides.

O discurso do novo presidente da Liga não foi corajoso. Foi tristemente e apenas uma ilustração banal da velha máxima literária: «É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.» Na assistência, os velhos leopardos rosnaram de satisfação.

E teriam rugido triunfantes se Hermínio Loureiro, fiel à sua linha de apreciação do Apito Dourado, tivesse concluído assim:

— E se afinal é falso o ouro com que os árbitros foram presenteados, tal como a digníssima comunicação social referiu na passada semana, como é que pode haver indícios de corrupção se as prendas, afinal, não tinham o menor valor?

Mas não se lembrou desta. Ou não teve coragem.
(...) "

"Contra a Corrente",
crónica (completa, aqui) de Leonor Pinhão,
no jornal A Bola do dia 05.10.2006