segunda-feira, maio 4

LEVE, FRESCA E LOIRA...

Em pleno final de tarde, Tripeiro Vermelho caminhava lentamente sobre o empedrado irregular da calçada de uma viela ribeirinha de “Palermo”. Estava em território inimigo, e todo o cuidado era pouco.
Carregava consigo uma volumosa mochila bastante pesada, tal era a dificuldade e o esforço que fazia, dando passadas vagarosas, com o seu corpo acentuadamente curvado para diante.
Embora confiante, sentia algum receio que aparecessem o “Óvigário” ou o “Jójó do Lordello”, ou ainda “Os Manos Costa”, lendários especialistas do gamanço, que sem contemplações, fosse qual fosse a circunstância, não se fariam rogados em dar uma valente palmada na sua mochila e cavar, tal o descaramento dessa gentalha marginal tão bem protegida por muitos agentes a soldo de Giorgio e seus capangas.
No entanto, ao lidar durante longos anos com esta corja, Tripeiro Vermelho ganhou alguma experiência e conhecimentos que o precaviam contra estas perigosas quadrilhas.
A meio desse tal beco ribeirinho, encontrou-se com Andrade Corrupto, o fanfarrão de outras histórias e outros “carnavais”, cego pelo grémio da Fruta Corrupção & Putedo, cuja vida se tinha cruzado com a dele quando ambos trabalhavam como engarrafadores numas caves inglesas de vinho generoso em Vila Cagaya.
Restava uma relação cordial de outros tempos e umas larachas de ocasião quando se encontravam. Tripeiro Vermelho nunca esqueceu este malabarista que por sorte não o arrastou consigo para a desgraça. Hoje, já reformado, relembrava-se muitas vezes da façanha de Andrade Corrupto que só não enriqueceu, porque nessa altura a justiça em “Palermo” não tinha ligações promíscuas a “capos”, que anos depois começaram a proliferar assustadoramente e que transformaram “Palermo” e a sua filha bastarda Cagaya, pejorativamente epitetada de Marrocos, em autênticas metrópoles mafiosas.
Nessa altura, já Andrade Corrupto, à sorrelfa, ganhava uns generosos cobres provenientes de “luvas” oferecidas por fornecedores galegos que vendiam rolhas de cortiça falsificada, à empresa vitivinícola onde trabalhava. O “artista” chantageava o encarregado de compras, pois sabia que este, todas as quartas e quintas-feiras, a partir das cinco até às sete da tarde, e mesmo à noitinha durante alguns serões, entre cubas, pipas e tonéis, à média luz, nas escuras profundezas daquelas caves, afinfava no melhor néctar com a insaciável e bela mulher do administrador britânico da empresa. Este “affaire” laboral era intenso e escaldante. Nos fogosos momentos daquela paixão proibida, a graduação do generoso, naquelas pipas que o envelheciam, e que tanto jeito davam como biombos de ocasião, subia tão espontaneamente que o néctar nem necessitava de aditivos. Até as aduelas chiavam!
Assim, Corrupto ia conseguindo falsificar as propostas para aquisição das rolhas, cuja prioridade na compra era sempre dada aos seus “amigos”. Quando se soube da marosca, pois na empresa começou a detectar-se, pela frequência cada vez maior de reclamações dos consumidores, que este vinho fino se deteriorava rapidamente nas garrafas, Corrupto, avisado por Lorênzo, que por sua vez tinha um inspector bufo na polícia de investigação, antes da busca à sua casa e do respectivo mandato de captura, deu à sola com uma amante, pressuposta afilhada, para SanMilagro de Comportela e lá se manteve por umas longas semanas até a borrasca acalmar. O chefe das compras também fugiu, mas foi para Inglaterra, e como tinha jeito para o pontapé na bola, ainda jogou nas reservas do Manchester United, mas sempre a escapar-se do “cámone” das caves. Andrade Corrupto, passado tempos, quando resolveu regressar pensando ficar impune, foi apanhado, julgado e condenado – eram tempos em que em “Palermo”, os tribunais eram tribunais e os juízes e as juízas se vestiam da cor da justiça, coisa que passou de moda, para actualmente usarem o azul dragontino carregado, do descrédito total – pela falcatrua das rolhas e foi ainda obrigado a indemnizar a empresa pelo “desvio” de cem pipas de um “vintage alto-duriense” da Pesqueira, muito procurado nessa época pelos apreciadores e grandes importadores da velha Albion. Dois barcos rabelos trafegueiros, sob as ordens de Corrupto, em vez de aportarem junto às caves, seguiram rio abaixo e secretamente fizeram a respectiva “transfega” para um veleiro inglês que ancorava junto à foz, um pouco à direita do cabedelo. Para camuflar mais esta trapaça, os barcos rabelos, logo após a “transferência” naufragaram devido à corrente…
O pior veio de pois, pois alguém, que ficou a ver navios, não se calou, “botou a boca no trombone” e pronto “lá se entornou a vinhaça”.
Só não ficou provado que tivesse sido ele o mandante do afundamento dos barcos.
Mas nem as influências maquiavélicas de Lorênzo - a eminência parda sempre omnipresente do grémio da Fruta Corrupção & Putedo, seu amigo fiel de longa data - nem a imagem e a cruz benzidas do santo que trouxe de SanMilagro, lhe serviram de atenuantes.
Mesmo jurando inocência, por São Longuinhos e pela virgindade dos vizinhos e afilhadas, Andrade Corrupto não se livrou de apanhar uma pesada pena.
Após cumprir uns anos no xadrez de Kustóiaz, onde teve oportunidade de tirar uns “cursilhos” com diploma e estágio nas saídas precárias, dedicou-se à actividade por excelência desta camarilha – proxeneta e passador.
Andrade Corrupto simpatizava com Tripeiro Vermelho. Tinham sido colegas de trabalho, e Tripeiro tinha sido sempre correcto com ele. Mesmo na altura em que Corrupto foi apanhado com a boca na botija. Por isso, naquela tarde, quando o vislumbrou, soltou mais uma vez o seu estridente assobio e chamou-o:
- Ó Vermelho, Vermelho! Eh pá! Que andas por aqui a fazer? Como é que é, pá? – perguntou Corrupto, um pouco admirado, pois sabendo que Vermelho sofria do reumático e da coluna, via-o carregado com um enorme peso nos ombros e costas.
- Como é que é? Como é que é o quê? Não estás a ver? – respondeu o Vermelho.
E sorrindo continuou:
- Estou a semear para colher!
Colher? – perguntou meio apalermado o Andrade.
Tripeiro Vermelho parou um pouco, tirou a mochila, pousou-a no chão e abriu um dos seus fechos de correr, retirando um objecto cilíndrico do interior.
Era uma lata de cerveja da marca Sagres e exibiu-a na direcção do seu antigo colega de trabalho, dizendo-lhe:
- Olha, eu agora só consumo Sagres. Tenho alguma dificuldade em encontrá-la aqui em “Palermo”, pelo boicote que os teus comparsas lhe fazem. Por isso estou a refazer o meu “stock” mensal, trazendo do minimercado do “mouro” umas quantas por dia, nesta mochila, que estão a oferecer como promoção. E que mochila! Bem resistente, vermelha como eu gosto, e com espaço para enfiar aqui uma dúzia e meia delas, caso precise de transportar algumas, quando vou ver o meu Glorioso!
E não se detendo, continuou:
- Sabes, antigamente ainda bebia daquela “mijoca” dali dos lados de Lessa, mas por causa da água usada no seu fabrico começava a ficar com a barriga tão pesada que ela descaía-me tanto, tanto, que me trilhava o “birimbau” e a “colhoeira”. Tinha que me pôr de lado para que tudo entrasse novamente em funcionamento e a arejar. Agora esta, a Sagres, tem outra leveza e outro sabor, é feita com os melhores maltes e lúpulos, e com a garantia de que a água é de grande qualidade para o respectivo fabrico. Refrigerada, fica leve, loira e fresca. É um prazer bebê-la!
Porra! Parece mesmo que estás a falar de uma gaja boa! – respondeu ainda meio aéreo o Corrupto.
O que é que queres com a nossa idade? A tua velhice, como a minha, só te confere a hipótese de fazeres umas “mijas” e se beberes a Sagres, que é excelente, garanto-te que não molhas os sapatos, nem as cuecas!
E mais, ó Andrade, a Sagres é a cerveja que apoia o meu clube, O Benfica, percebeste?
- Ai é? – perguntou então o Corrupto a olhar já meio de esguelha.
E mais, como a minha próstata funciona a meio gás, a Sagres dá-me uma vontade de mijar que nem te digo! Vou à horta e aquilo é que é regar! Um regalo! – ufanou-se Tripeiro.
Bem, eu também tenho esses problemas, como tu sabes, mas a chatice principal é que os meus tomates também sobem por contrapeso da barriga! E também já reparei que quando bebo da outra, porra, ainda fico com eles mais entalados contra ela – disse muito sério Andrade Corrupto.
E prosseguiu no seu raciocínio:
- Olha, pelo sim, pelo não, vou nessa, vou na Sagres. Não tenho mas é horta, mas logo se verá. Só não trago a mochila. Para disfarçar vou levar o carrinho de “compras” azul que o meu padrinho, o Giorgio, me ofereceu como prenda dos meus seis meses de sócio e agitador na Fruta Corrupção & Putedo.
- Ó Andrade, mas nem é tarde, nem é cedo, pá! Se é assim que desejas, vendo-te já as que aqui trago e recebes uma de bónus, que é “oferta da casa”, ok? - respondeu e propôs o Vermelho.
Andrade Corrupto pensou um pouco, meteu a mão no bolso esquerdo das calças como que confirmando a presença de “cacau” e atirou:
- É para já!! Assim nem me dou ao trabalho de me deslocar. Negócio fechado. Toma lá a nota, passa para cá o líquido e “bibó”…o teu Benfica!
Tripeiro Vermelho, ao outro dia, trouxe a mesma quantidade, duas de bónus e mais uma mochila.
Não se sabe se vendeu essa nova remessa de Sagres ao Andrade Corrupto. Mas é muito provável que sim!

GRÃO VASCO